Corona Chronicles #3: o barulho do mundo




Acordei de madrugada com vontade de fazer xixi. Virei de lado, achei que ia passar, não passou. Levantei e sentei na privada. Vi uma lagartixa no gaveteiro. Acho que tá morta. Algum gato matou. Levantei. Ela sumiu. Bom, tava viva. Voltando pra cama a gata mia, queria comida. Fui no escritório coloquei comida pro gato. Deitei. Nada de sono. Aqui de casa a gente consegue ouvir o barulho da rodovia de madrugada. É um ruído constante, uma interferência permanente. Às vezes um barulho mais alto, um carro, um caminhão, uma buzina. Uma moto passa correndo. Ou o trem. Que dá pra ouvir de qualquer canto da cidade. Mas a rodovia emite um som constante, um ruído, uma interferência. Como se o barulho de todos os carros rodando em algum ponto do estado chegassem equalizados até nossas casas. E de madrugada a gente ouve esse ruídos constante que é meio eco meio interferência. É o que eu chamo de barulho de mundo. E esse barulho de mundo a gente só ouve mesmo de madrugada. Quando acorda e não consegue mais pegar no sono. Quando a pessoa do seu lado está quente, roncando e com aquele cheiro de sono. Quando a maioria das pessoas está dormindo. Ou fazendo coisas que normalmente não são feitas à luz do dia.

O barulho que o mundo faz quando a gente se retira do mundo é o verdadeiro barulho de mundo. Talvez até não sejam carros mas o som que a terra faz esse ruído da madrugada. E nunca saberemos porque se resolvermos todos nos levantar e procurar o barulho do mundo ele vai sumir, vai ficar em silêncio, vai virar "barulho de mundo com gente". Eu gosto do barulho de mundo sem gente. Mas gosto de ser gente pra escutar esse barulho e saber que esse é o barulho que o mundo faz sem a gente. Tenho até um poema sobre isso. Sobre o barulho do mundo. Mas eu não sabia ainda que chamava "barulho do mundo". Não é um poema incrível. Mas é um poema que eu fiz numa noite igual a noite passada. Que eu acordei de madrugada e fiquei ouvindo o barulho do mundo e pensando palavras e senti que precisava ficar correndo atrás das palavras. Perseguindo as palavras pra elas não fugirem no meio da madrugada. Aí a gente entra naquele modo de pensar em palavras e perseguir palavras. Vi uma vez que a Clarice gostava de acordar de madrugada pra escrever. Ontem eu entendi porque. Porque dá pra ouvir o barulho do mundo. Porque dá pra fingir que o barulho do mundo não é feito por gente. Porque de madrugada a gente pensa com palavras dançando dentro da cabeça. Com palavras perseguindo o trem, o carro, a moto. Palavras correndo a 100 km/h na rodovia e emitindo um ruído constante. Eu pensei em levantar em escrever. Como a Clarice fazia. Pensei "nossa acho que vou escrever essas palavras, acho que vou levantar, ligar o computador e escrever as palavras, e perseguir as palavras. Vou fazer como fazia Clarice, como fazem as escritoras". 



Eu não levantei, eu fiquei ouvindo o barulho do mundo, pensando com palavras e fazendo a oração do anjo da guarda pra poder pegar no sono porque a essa altura eu já estava começando a sentir medo do dia seguinte. Já estava começando a sentir medo do dia, da luz e da falta do barulho do mundo. E da impossibilidade se ouvir o barulho do mundo que nos acomete quando está dia e quando se tem trabalho a fazer. Eu rezei e decidi que iria escrever depois, quando estivesse acordada. Que iria contar com a sorte, que mesmo nessa hora de incapacidade eu conseguiria minimamente perseguir as palavras, lembrar de como elas dançaram na madrugada. Que iria escrever alguma coisa sobre o barulho do mundo. Qualquer coisa serviria, no fim, pois escrever não é o mesmo que ouvir.

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