"Paterson" e a fábula do instante qualquer

Foi na aula da Angélica Freitas, em São Paulo, em Pinheiros. Ela já havia falada da Ana Martins Marques, da Adília Lopes. Aí ela surgiu com William Carlos Williams. So much depends upon a red wheelbarrow… (tanta coisa depende de um carrinho de mão vermelho…). O que havia por trás daqueles poemas que surgiam como instantâneos da vida cotidiana? Os poemas This is Just to Say e Red Wheelbarrow ecoaram por meses em minha mente. Os coloquei na parede de casa. Escrevi no espelho a frase célebre do poeta “no ideas but in things”. Poemas tão simples e ao mesmo tempo tão cheios, tão preenchidos de movimento.
Foi alguns meses depois, numa aula de filosofia, que o mantra de William Carlos Williams ressurgiu-me ressignificado. Estava diante dos textos de Deleuze e Bergson. Mais precisamente do livro Cinema a Imagem-Movimento, em que Gilles Deleuze, em releitura da obra de Henri Bergson, apresenta a máxima de que a matéria nada mais é do que um conjunto de imagens. As coisas todas são imagens, inclusive nós mesmos. E se toda a matéria é imagem, nossa percepção das coisas nada mais é do que o reconhecimento de recortes dessas imagens — instantâneos!! — que se convertem em pensamento, reação, ação. O processo de percepção e tomada de consciência do mundo que nos cerca Deleuze entende como movimento.
“No ideas but in things” ganhou para mim todo um novo sentido, e os poemas de William Carlos Williams despontam à semelhança dos instantâneos de nossa percepção, transcrições de nossa consciência do mundo material. E assim toda a sensibilidade reside na objetividade do olhar de um corpo vivo, que percebe as coisas como as imagens que elas são e é isso o que importa. Então, consegui compreender que não há nada além do “carrinho de mão vermelho”. Não há nada de misterioso que se esconde atrás da matéria que não nos é revelado, tudo o que existe está ali, na imagem que as coisas têm de si mesmas. O que acontece é que nossa percepção constantemente escolhe as faces da matéria que deseja tomar consciência, e por essa razão precisa é que na verdade, para nós, o que ocorre é que percebemos menos do que de fato existe. E nos poemas de William Carlos Williams temos a chance de perceber essa matéria como nova e fresca, tomar consciência daquilo que existe pura e simplesmente mas que nossa própria natureza consciente nos omite: recebemos novas luzes de coisas velhas que, quase sempre, não nos parecem brilhar.
Poderíamos ficar somente na poesia se Deleuze não tivesse, ainda em a imagem-movimento, falado tão magistralmente do cinema e como este é o “o sistema que reproduz o movimento reportando-o ao instante qualquer”. Aqui o instante qualquer nos interessa não somente pois a poesia de W. C. W. parece surgir nessa ideia de um momento singular mas que não carrega nada de privilegiado, mas também pois essa ideia é o que define a aura de Paterson, de Jim Jarmush. O longa narra uma história singela: Paterson é motorista de ônibus e poeta, admirador de W.C.W.. Ele vive e trabalha na cidade de Paterson, onde nasceu o famoso poeta. Ele escreve poemas em um pequeno caderno nos intervalos de seu trabalho.
O filme todo é marcado pela ideia de deslocamento espacial: muitas cenas de Paterson dirigindo seu ônibus pelas ruas da cidade, levando passageiros e caminhando pelas ruas; e passagem temporal: o filme se desenrola no decorrer da semana, dia após dia seguimos a rotina de Paterson. Mas não é uma ideia qualquer de movimento, mas a ideia do movimento reportado ao instante qualquer, sistema de reconstituição do movimento que Deleuze identifica como sendo ontológico ao próprio cinema.
A ideia do instante qualquer vem de uma concepção moderna do movimento, que compreende o deslocamento dos corpos no espaço de modo contínuo, evocando um tempo e um espaço comuns a esses elementos. Em oposição à uma concepção antiga, que compreendia o movimento a partir da transformação das formas, elegidas como representações essenciais da matéria. Essa concepção de movimento está, por exemplo, no balé clássico, onde a pose é destacada, em detrimento da ideia de continuidade.
Em a imagem-movimento Deleuze vai defender que o cinema se opõe a essa visão clássica de movimento, ao nos oferecer imediatamente uma imagem que contém ela mesma movimento. Ainda que o mecanismo do cinema seja composto por fotogramas — instantâneos!! — não são esses instantes fixos, como poses estáticas, que estão na sua essência, mas a ideia de movimento, a evocação da duração de uma ação protagonizada por corpos e linhas luminosas dentro do espaço limite do enquadramento. Por isso ele diz que o cinema não é apenas uma imagem em movimento mas a própria imagem-movimento.
Assim, para Deleuze, o cinema é marcado pela fluidez, pela transformação incessante das formas que ocupam o espaço, pois isso ele fala em instante qualquer, pois o que importa é o todo que compõem o movimento, a ideia de constante transmutação e translação de corpos. E é justamente esse movimento de transformação que impregna Paterson.
Há uma ideia de ciclo, de constância mas também de uma transformação constante e sistemática, quase matemática, com sequências que se repetem a cada dia da semana mas que são sempre ligeiramente diferentes, sempre há um algo novo: uma conversa de uma dupla de passageiros, a menina poeta que cruza seu caminho, o ônibus que quebra. Todos os dias ele acorda, o vemos abraçando sua namorada, caminhando até o trabalho, escrevendo um poema antes de começar a dirigir. Depois ele dirige pela cidade, volta para cada casa, arruma a caixa dos correios que está sempre caída, conversa com sua namorada. As ações se repetem, mas são sempre diferentes, há uma simetria mas uma transformação qualitativa naquele pequeno universo que compreende todos aqueles personagens. O que ele diz para a namorada ao amanhecer é sempre diferente, as conversas no ônibus são sempre diferentes, as pessoas nas ruas são sempre outras. E essa noção da mudança qualitativa é especialmente observada quando vemos, a cada dia, ele escrever uma nova parte de um mesmo poema, e esse poema vai surgindo e criando corpo, como um ente que tem vida própria.
Essa narrativa calcada no instante qualquer, na junção de momentos equidistantes de um cotidiano neutro, sem afetação, ganha corpo também pelo ritmo lento dos diálogos. Não há momentos de gritaria, de vozes que aumentam de tom. Mesmo os momentos que criam uma sensação de tensão são criados como sendo apenas mais um momento, apenas mais um corte nesse grande movimento de translação que o corpo vivo de Paterson faz pela cidade.
É, de certa maneira, um filme que afirma para si um um tempo outro que o da internet e o das redes sociais. E isso não está na obviedade de o personagem principal não querer usar celular. Aliás, até quase o final do filme não conseguimos ter certeza de qual época o filme se passa, pois não há referências há a elementos contemporâneos como celulares e notebooks. O filme constrói um tempo-espaço forjado não no ritmo da pós-modernidade hiper conectada e há de fato a negação de ações que funcionem no sistema posts-poses-likes, marcado pela descontinuidade e pela criação de momentos artificialmente privilegiados. Paterson adota para si um tempo-espaço lento, estável, preciso e seguro. Um tempo de observação e percepção. Um tempo, talvez, do próprio cinema, que delimita um conjunto, um sistema de elementos que agem e interagem entre si, composto por instantes quaisquer que têm igual importância entre si, ainda que sejam absolutamente singulares e possíveis de poesia. A moral dessa fábula é que mesmo na lentidão, mesmo na falta do espectáculo, na falta de ápices e momentos extraordinários há mudança. E há mudança concreta, há mudança no estado das coisas para além do indivíduo, e ainda que a mudança não seja percebida por nós, seja por estarmos desatentos ou por ser extremamente sutil, ela eventualmente vai transformar para sempre os seres que somos, e nós não precisamos ter pressa para isso.
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REFERÊNCIAS
DELEUZE, Gilles. Cinema 1 – A Imagem-movimento. São Paulo: Editora 34, 2018.
Este texto foi originalmente publicado no perfil da autora no Medium: https://medium.com/@yasminpereiradossantos/paterson-e-a-f%C3%A1bula-do-instante-qualquer-6bfabcd69667 

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