Corona Chronicles #2: Pathos da conectividade



Nos últimos anos eu desenvolvi uma relação bastante complexa com a internet. Amo e odeio. Na verdade creio que o que é problemático mesmo são as redes sociais. Eu construi minha vida profissional (sem muito critério e organização, é verdade) de modo que há em mim aquela ideia bastante comum de que “não posso deletar minhas redes sociais porque precisa delas para trabalhar”. O que na prática não é muito verdade. 

Eu não tenho um trabalho fixo. Nunca tive. Às vezes sonho com isso. Cerca de um ano atrás eu fui a Bahia e ganhei uma fitinha do Nosso Senhor do Bonfim. Fiz o desejo “quero um emprego de quatro mil reais”. Isso foi há um ano e meio. E desde então eu lembro daquele personagem do Wagner Moura naquele filme O Caminho das Nuvens, que viaja da Paraíba para o Rio de bicicleta com toda a família em busca de um emprego de mil reais. “Eu preciso de um emprego de mil reais pra sustentar minha família”, ele fala. E quando ele chega ao Rio e finalmente encontra um emprego numa obra fala algo do tipo “esse emprego não é pra mim não, mas serve pra você”, se dirigindo ao filho mais velho. Ele precisa do seu emprego de mil reais. Ele sabe que menos que isso não dá. Esse personagem do Wagner Moura me inspira, é por causa dele que eu botei fé na minha fitinha do Senhor do Bonfim. Eu preciso de um emprego de quatro mil reais. Na minha área (que eu não sei exatamente qual é, mas me auto intitulo “trabalhadora da cultura”). Na minha cidade. Não pode ser assim tão difícil.

Eu cheguei muito perto em janeiro de 2019, um processo seletivo no Senac para dar aulas no curso de radialismo. Fui surpreendida por um tema da prova prática que era “produção de podcasts”. Desisti. Não manjava, achei que não ia rolar, que não ia passar. Ou que mesmo que passasse não ia querer dar aula de um assunto que eu nem gostava. Ressoa em mim aquela história de que os homens se candidatam às vagas de trabalho quando preenchem apenas 60% dos requisitos, enquanto mulheres sentem que precisam preencher 100% deles. Enfim. A fitinha ainda está no meu braço aguardando o emprego de quatro mil reais.

Mas no fundo eu me pergunto, será que eu quero mesmo esse emprego fixo? Chefe, bater cartão, horários. Bom, eu com certeza gostaria de ter os benefícios da carteira assinada. Só sei que no meu íntimo meu desejo é ter um trabalho que não dependa de estar presente em facebook, instagram, twitter etc. Não sei o quanto de realidade existe nesse desejo ou se é só uma grande ilusão romântica. E às vezes eu sonho com trabalhos bem românticos mesmo que parecem saídos de um filme indie dos anos 90, como atendente de biblioteca, atendente de livraria, atendente de museu. Todos trabalhos que envolvem objetos datados e em decadência. 

E o que vem acontecendo, na prática, é que boa parte do meu tempo de trabalho envolve estar em redes sociais. Seja trabalhando em projetos que de fato me rendem algum dinheiro, como quando por exemplo eu ganhei um edital do ProAc e precisei do facebook para fazer pesquisa. Seja trabalhando diretamente com a divulgação de eventos e projetos que organizo ou trabalho, como o brechó que tive, o bazar que organizo na minha cidade ou o restaurante que trabalho. Seja divulgando serviços que eu presto, como de edição e produção de vídeo e VJ (nenhum trampo bom veio de fato dessa divulgação, quando rola algo é porque de certa maneira eu já construí uma rede de clientes e parceiros, mas a gente divulga mesmo assim, porque, né, nunca desperdiçamos tempo suficiente no facebook). Seja divulgando meu poemas e videopoemas, que, neste caso, eu obviamente mão tenho nenhuma expectativa de que isso vá render algum dinheiro. E, por fim, passo também bastante tempo simplesmente entrando em grupos como o “Trabalhadores da Cultura, uni-vos” procurando meu trabalho de quatro mil reais, mas na melhor das hipóteses vou achar algum processo seletivo de algum freela que vai fazer meu próximo mês um pouco menos complicado. Isso tudo basicamente ocorre só no facebook. No instagram 90% do tempo é simplesmente gasto em rolar a timeline ou stories esperando que algo milagroso aconteça que vá me resgatar do meu limbo profissional. 

Sim, é provável que eu tenha uma relação muito romântica e idealizada não só com o mundo do trabalho mas também com as redes sociais. E, relendo tudo que eu escrevi agora, talvez a verdade seja que nem quero esse emprego fixo e o grande conflito seja justamente aquela coisinha bem simples de O QUE É EU QUE REALMENTE QUERO?. Tudo bem. Isso talvez Freud explique. Da-lhe terapia e muita paciência pois nisso eu não me iludo e sei que esse é um conflito nada simples de resolver. Talvez meu pedido para o Senhor do Bonfim devia ter sido esse. Mas quem resiste a pedir dinheiro, né?

O fato é que, nessa confusão toda da minha vida profissional o grande vilão são as redes sociais. Demonizadas. Execradas. Odiadas por mim. As responsáveis pela minha ansiedade, pelas minhas projeções e procrastinações. Culpadas por deixar o cérebro num estado de agitação permanente. Pela raiva, pela inveja do amiguinho, pela inveja das sub celebs. Culpadas por aquela sensação de que não importa quanto você divulgue seu evento, quanto você divulgue seu projeto, poste vídeos, poste stories, faça live ele nunca vai ter o alcance que você deseja, a menos que você pague por isso. Serão poucos os amigos que vão compartilhar ou dar uma mão na divulgação. E ouso dizer que se você for mulher vai ter menos apoio ainda de seus amigos nas redes (postei e saí correndo). O trabalho de divulgação será sempre infinito e a sensação é de que nunca se chega a lugar nenhum. Ainda assim, as redes parecem, hoje em dia, ser a ÚNICA janela para o mundo. A única ponte entre o eu e o outro. O único meio de fazer os outros saberem que você tem um livro, um filme, uma peça, um restaurante. E o pior de tudo é que nem sempre você vai alcançar ali as pessoas que tem verdadeiro interesse naquilo que você tem a dizer. Estamos completamente amarrados. Reféns.

Eu sinto uma saudade profunda de receber e-mails. De RESOLVER COISAS DE TRABALHO POR E-MAIL e não pelo Whats App. Sim, eu sei. Esse tempo nunca mais vai voltar. Eu não me iludo. Sei disso. E não descarto a possibilidade de meu sentimento de repulsa às redes sociais ser puro recalque mesmo, de quem tá lá feliz, aceitando essa nova realidade de que é ali que as coisas acontecem e pronto. 

E o mais absurdo disso tudo é que, por mais que eu saiba que na prática muito pouca coisa boa veio de ficar ali nas timelines procurando o emprego dos sonhos ou tentando divulgar meu trampo no varejo, eu simplesmente não consigo sair do facebook nem do instagram. Eu juro. Eu tentei. Cheguei a ficar quatro meses sem acessar nada e o resultado foi espantoso. Meu cérebro pareceu recuperar suas habilidades, suas faculdades de pensar e produzir e se conectar com o mundo real. Minha percepção de tempo foi alterada. Mas eu acabei voltando porque no fundo existe aquela sensação de que eu preciso estar ali porque alguma oportunidade maravilhosa vai aparecer. A oportunidade dos sonhos que vai resolver todo o meu conflito e frustração de mais de uma década que assombra minha vida profissional. Eu sei, é de deixar qualquer psicanalista de cabelo em pé.

Essa minha relação de ódio e apego, de “enlace neurótico” (roubei esse termo do canal da Flor e Manu, achei genial), de vício mesmo com as redes sociais, ou melhor, com instagram e facebook, vamos dar nome aos bois, criou em mim uma estranha nostalgia e adoração da época em que vivíamos sem redes sociais, sem smartphone, sem 4G, enfim, sem a dominação ubíqua do digital e do virtual em nossas vidas. 

Eu lembro dos meus anos de faculdade, quem nem foi há tanto tempo assim (2007 à 2010, ok, talvez faça bastante tempo sim) que o máximo que rolava era um orkut. Não tinha essa de ficar em grupo de whats, de ficar mandando mensagem o tempo todo pra pessoa, de ficar sabendo onde a pessoa está a todo momento. A gente ia pra faculdade encontrava a pessoa lá e boa, tava tudo certo. A reunião de trampo a gente marcava por e-mail. 

Eu fico pensando onde exatamente ocorreu o ponto de virada. Onde a coisa começou a desandar e as relações interpessoais passaram a ocorrer de forma tão intensamente mediada por aparelhos. Sim eu sei que existia mIRC, icq, msn, sms e tudo o mais. Mais era diferente. Vocês sabem que era, vocês sabem do que estou falando. Eu lembro quando eu, alguns anos atrás, inocentemente criei minha conta do instagram. Nem imaginava a devastação, a destruição de vidas.

Eu sei que estou sendo dramática, mas quero que vocês sintam a proporção que essa coisa de redes sociais tem na minha vida. Eu penso nisso o tempo todo. Eu sinto a presença das redes sociais o tempo todo, penetrando os domínios na vida fora do universo virtual. Eu realmente acredito que as redes sociais mudaram pra sempre nosso modo de pensar, de sentir, de estar no mundo. E dever ter estudos ai falando disso. 

Eu ando pelo mundo, vivo, como, acordo, sonho e é como se houvesse um halo, uma névoa, uma rede (trocadilho, desculpe) que faz o mundo virtual efetivamente ditar o ritmo e a percepção de tudo o que vivemos. Uma espécie de pathos da conectividade do qual não podemos escapar. E eu sonho, em vão, com esse dia em que meu trabalho me permitirá não ter nem acebook nem instagram. 

Por ora eu me refugio na ficção. Filmes antigos e novelas antigas. Ano passado foi Laços de Família. Me encantava ver aqueles personagens todos caminhando num mundo sem smartphones, fazendo ligações de telefone um para os outros. Existindo sem facebook, sem instgram. Falando coisa tão absurdas que só podia fazer sentido numa época de TV pré redes sociais. Esse ano está sendo O Clone. Um enredo que só podia ser concebido mesmo nos anos 2000. Unir a cultura muçulmana com os dilemas da clonagem humana. É tão datado que meus olhos brilham, eu consigo sentir a aura de uma existência sem redes sociais, sem lives, sem stories. Sem a perseguição obcecada por imagens técnicas que vendem nossos cotidianos como a última boa mercadoria do capitalismo.

Estou sendo romântica? Saudosista? Iludida? Com certeza, não tenho a menor dúvida. Mas vocês já assistiram no youtube um show ao vivo dos anos 90, ou dos primeiros anos da década de 2000? É impressionante como todo o público está de fato VENDO o show e não filmando com o celular. Eu me imagino ali naquele show. Imagino que estava lá, e aí acabou, eu fui pra casa, eu escrevi no meu diário sobre o show, eu não fiz nenhuma foto, não há nenhum vídeo do show para ver nas redes sociais. Pronto simples. Foi o que foi.

Não estou dizendo que hoje em dia todas as experiências são menos aproveitadas por conta de smartphones ou redes sociais (talvez eu esteja, na verdade) mas para mim há algo diferente, há algo que se perdeu. Há uma falta.

Com certeza esse algo que falta diz muito mais sobre mim do que sobre o mundo, isso é fato. Talvez eu deva começar a aceitar o mundo como ele é. Talvez as pessoas sempre sintam uma certa nostalgia de como era o mundo antes. Antes do que? Antes de qualquer coisa. Mas eu vou continuar comprando meus vestidos de tecido sintético no brechó e me imaginar vivendo em algum ano entre a virada de milênio. Vou me imaginar sentando no banco de uma praça com nada além de um livro nas mãos.

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