Corona Chronicles #1: O Tempo primordial

O todo sem a parte não é todo,
A parte sem o todo não é parte,
Mas se a parte o faz todo, sendo parte,
Não se diga, que é parte, sendo todo.
Gregório de Matos
Eu queria não começar esse texto falando que estamos no meio da pandemia histórica de coronavírus que toma conta do mundo neste começo de 2020. Eu queria escrever uma crônica existencial e intimista que não precisa revelar esse fato mas que ainda assim conseguisse transmitir a exata sensação do que é estar vivendo esse momento. Meu desejo era não cair na obviedade dos fatos.
Mas mudei de ideia. Talvez tenha sentido preguiça. Talvez tenha sentido vontade de falar logo de cara o contexto em que esse texto é escrito. Como arrancar um band-aid ou como dar logo as más notícias. Ou talvez eu tenha me dado conta de que, ainda que eu não falasse absolutamente nada sobre o coronavírus, ainda assim seria impossível transmitir, com um texto, um sentimento que desse conta de representar as sensações únicas e específicas de cada sujeito nessa pandemia.
Como reage cada pessoa sob o efeito de um fato global? Como dar conta do específico de cada ser que é acometido por uma mesma calamidade que atinge quase que simultaneamente o mundo todo? Há uma mesma coisa que ocorre nos quatro cantos do mundo da qual ninguém consegue ficar alheio. E ao mesmo tempo há uma única e exclusiva subjetividade sendo produzida em cada indivíduo que se encontra sob efeito desse fato.
Ao mesmo tempo que não podemos nos omitir do fato de que estamos totalmente cercados, rodeados de outros (não haveria vírus se não houvesse outros) estamos absolutamente sozinhos na nossa própria percepção. O vírus escancara nossa dupla condição de sermos, ao mesmo tempo, parte inalienável de um conjunto e um algo separável que precisa se isolar. Precisamos sobreviver, preservar nosso corpo, mas precisamos garantir a sobrevivência de outros corpos. Somos o eu e somos o outro de nossos outros.
E no fim, o que eu realmente gostaria de falar, é de uma sensação de volta no tempo que me inunda. Ou melhor, de uma sensação de que é um tempo outro que se desenrola. Ou talvez, mais que um tempo outro, talvez haja um ritmo que move o mundo nesse momento. “O ritmo provoca uma expectativa”, diz Octavio Paz (1982: 68).
Esse estado de espera que nos encontramos, essa sensação de algo que está por vir, de que algo vai acontecer. É quase como se algo nos perseguisse. E esse algo é um ritmo. Um ritmo que não é simplesmente a medida de tempo artificial do mundo funcional que criamos. Estamos flertando com uma sensação de tempo de que não é o tempo do relógio. Não temos, literalmente, como medir o tempo — quantas semanas, meses para tudo isso passar? — pois o ritmo que estamos sentindo independe de nossas vontades, não é criado exclusivamente por nosso movimento neste mundo. “Todo ritmo é sentido de algo” (PAZ, 1982: 69). E o mundo caminha, vai para algum lugar apesar de nossas movimentações e escolhas.
E eu ando pela casa, e quando vejo meu pai estendendo as roupas no varal, eu estou na casa da minha avó, vinte anos atrás, é o varal dela que eu vejo, é ela se movimentando, é o cheiro e espírito da casa dela que se materializa naquele momento.
E eu acordo e sei que é véspera de Natal em Pitangueiras, o cheiro do forno, o mormaço da rua. E quando o vento entra pela janela do meu quarto na casa dos meus pais onde estou agora é o mesmo vento que vem da rua da casa da minha avó, vinte anos atrás. Quando ameaçava chover ventava muito e muitas vezes não chovia, mas eu ia para a calçada e ventava no vestido e ventava na árvore.
E nesse ritmo, caminhar para a sala e ver a TV ligada é a mesma coisa que entrar na sala e ver a TV ligada na casa da minha avó, há vinte anos em Pitangueiras. A mesma sensação de que a vida é o que ela é e de que a mim só resta observar. Ser testemunha de um algo que ocorre independente de minha existência
“O ritmo não é medida, mas tempo original" (PAZ, 1982: 69).
E o ritmo que recai sobre nós me permite acessar um tempo em que tudo é agora, e memórias e lembranças são sentidas não como tais, mas como materializações de sensações. Como materializações do ser que fui. Quem eu fui pode ser de novo. O que eu vi eu vejo de novo.
O ritmo que recai sobre nós é o ritmo de um mundo que existe apesar de nós.
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REFERÊNCIAS
PAZ, Octavio. O Arco e a Lyra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1982.
Texto originalmente publicado no perfil da autora no Medium: https://medium.com/@yasminpereiradossantos/corona-chronicles-1-bae1c03223f9




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